O jornalista e activista congolês Caddy Adzuba, Prémio Princesa das Astúrias 2014 para Concord, denunciou na terça-feira que a República Democrática do Congo (RDC) se encontra numa situação «catastrófica» causada por uma «guerra económica com multinacionais por detrás dela».
Num evento realizado em Madrid e organizado pela ONG Entreculturas, Adzuba advertiu que a população congolesa está a ser explorada, incluindo mulheres e crianças, para «extrair todos os minerais possíveis, especialmente o coltan», para que os europeus possam fabricar telemóveis e computadores, entre outros produtos.
«Dou o exemplo da Bélgica, um país que não tem particularmente muitos recursos naturais e que não produz muito, mas é considerado um país rico. Mas porquê e às custas de quem? A resposta é clara: há pessoas que decidiram ir aos países africanos para implementar uma estratégia de desestabilização da população e aproveitar ao máximo», disse, antes de salientar que, «por coincidência, as guerras têm lugar nos países africanos mais ricos em recursos naturais».
Neste sentido, salientou que existem países com menos recursos deste tipo e que «não apresentam grandes conflitos». Por esta razão, salientou que estas são «guerras económicas apoiadas por multinacionais», embora estas «não se encontrem directamente na linha da frente».
«As multinacionais financiam as guerras que são do seu interesse. Por exemplo, o país é constituído por 27 províncias e nem todas elas estão em guerra. Há alguns que são, precisamente os mais ricos, e há outros onde não há conflito. Mas infelizmente, de onde eu venho, há uma guerra constante. Vivemos nesta situação desde os meus 14 anos de idade», lamentou, antes de salientar que milhões de pessoas morreram em consequência do conflito no leste do país.
Também avisou que quase um milhão de mulheres foram violadas, um número aproximado que poderia ser mais elevado. «É um país dizimado» apesar de possuir «recursos naturais imensuráveis» tais como ouro, coltan, urânio e diamantes.
«Sacrificamo-nos para que os europeus possam viver em opulência, para que possam ter os seus telefones, os seus computadores, para que possam construir edifícios», disse, condenando ao mesmo tempo os fortes preconceitos que existem em relação aos diferentes países de África e a exploração contínua dos seus recursos.
Adzuba rejeitou a ideia de que se trata realmente de uma guerra entre africanos, e qualificou-a como «uma guerra que a Europa está a travar em África». «Há muitas multinacionais de olho na mineração e a parte oriental do país é mais rica do que a ocidental. Para entrar num país tão grande, tem de se aliar aos países vizinhos. Países como a França e a Alemanha também estão por detrás de tudo isto», explicou ele.
Em relação ao aumento dos confrontos entre o exército e membros das milícias do Movimento 23 de Março (M23), que se intensificaram nos últimos meses, explicou que aqueles que procuram a guerra no país «utilizaram o aspecto étnico». «Eles tomaram uma minoria étnica e formaram um grupo militar armado, o M23. Este é o principal grupo que faz a guerra no Leste», acrescentou ele.
O activista, que recordou que cerca de 100.000 pessoas foram deslocadas devido ao conflito armado, apontou o exército ruandês como o principal apoiante dos rebeldes. «A República Democrática do Congo é um país que sofre de guerra há mais de 20 anos e que neste momento não pode comprar armas para se defender, pelo que o seu governo se encontra numa situação muito frágil», disse ela.
«O objectivo da guerra em si não é conquistar o país, mas ter controlo sobre recursos naturais como o petróleo e o gás, e controlar o leste, que é precisamente a área onde estes recursos podem ser explorados. Este é o objectivo do grupo armado, mas não serão as responsáveis pela exploração destes recursos, mas sim as multinacionais que os apoiam e países como os Estados Unidos e a França, os habituais», afirmou.
A SITUAÇÃO DAS MULHERES Adzuba também chamou a atenção para a terrível situação das mulheres no país, onde «a guerra está a ser travada nos seus corpos», como ela disse. «Muitos grupos armados actuam com o único objectivo de espalhar o terror entre as comunidades locais», disse ela.
Apelou a «nomear as vítimas de violência sexual e violação», dado que «por vezes os números não são suficientemente exactos». «Se falamos de mutilação, estamos a falar da atrocidade experimentada pelas mulheres que a sofrem», disse ela, antes de explicar que «já não estamos a falar de violação, mas de feminicídio».
«Eles inserem garrafas, granadas e facas nas vulvas destas mulheres. No caso das mulheres grávidas, é pior, elas abrem os seus ventres e tiram o feto. Estes são factos (…) e é muito difícil contar este tipo de histórias», disse ela, embora tenha sublinhado que estas mulheres «já não são vítimas, mas sobreviventes». «Eles transformaram o sentimento de desespero no oposto», acrescentou ela.
Sobre o fluxo migratório causado pela guerra, salientou que é «totalmente legítimo que haja mulheres que decidam deixar o seu país em busca de protecção internacional para viverem livres da violência, pacificamente e em liberdade». «Há muitas razões pelas quais as pessoas partem. Neste caso são mulheres que foram mutiladas, violadas, forçadas a casar…. Pode haver razões imperiosas que as levem a partir (…), e estas mulheres movem-se em busca de protecção», disse Adzuba, que nos convidou a «considerar como acolher estas pessoas».
O M23 é acusado desde Novembro de 2021 de realizar ataques contra posições do exército na província do Kivu do Norte, apesar de as autoridades congolesas e o M23 terem assinado um acordo de paz em Dezembro de 2013, na sequência de combates desde 2012 com o exército, que foi apoiado pelas tropas da ONU.
As relações entre a RDC e o Ruanda têm estado em crise desde a chegada maciça ao leste da RDC de Hutus ruandeses acusados de massacrar Tutsis durante o genocídio ruandês de 1994. Após um período de abrandamento diplomático, o conflito voltou a ganhar intensidade em Maio, quando o governo congolês convocou o embaixador ruandês para denunciar o alegado apoio do país à M23.
O Ruanda, no entanto, continua a negar o seu apoio ao M23, enquanto que as Nações Unidas e os Estados Unidos estão convencidos das ligações entre o Ruanda e esta organização, herdeira directa dos sucessivos movimentos rebeldes enraizados no genocídio ruandês de 1994.